quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O estupro, a lei nova e o legislador de 1940

Neste mês de agosto, a Lei 12.015/2009 alterou alguns dispositivos do Código Penal referentes aos crimes sexuais. A primeira grande mudança e que tem passado, muitas das vezes, despercebida está no próprio TÍTULO VI, anteriormente nominado "DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES" e agora chamado "DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL". Relacionar os crimes sexuais como crimes aos costumes ainda era um resquício do legislador, moralista ao extremo, de 1940, que ainda atribuía ao direito penal a tutela de bens jurídicos exclusivamente morais, o que, por si, contrariava a ideia, hoje difundida, mas na época nem tanto, de fragmentariedade do Direito Penal. Nesta esteira tínhamos a expressão "mulher honesta", referindo-se a mulher virgem antes do casamento (e que por ter esta condição, merecia especial tutela pelo Código) e a tipificação do adultério como crime, no art. 240 do CP, sendo que, só há pouco tempo, a expressão e o aludido delito foram abolidos do Código Penal


Vê-se, assim, que aos poucos o legislador foi adaptando o Código aos novos valores sociais e à verdadeira função do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito, onde vigem princípios limitadores à sua drástica intervenção como o da intervenção mínima, fragmentariedade, insignificância, adequação social e etc. Desta nova Lei, além da mudança do título, como destacamos inicialmente, temos a revogação do crime de atentado violento ao pudor, transferindo a tutela de seus bens a um tipo único, o do art. 213 (estupro).

Mais que uma questão de adaptação à nova realidade social -afinal, agora é possível o estupro de alguém que biologicamente seja homem, mas anatomicamente seja mulher, com as modernas cirurgias de troca de sexo, entre outras tantas coisas criadas pela modernidade e que o legislador da década de 40 não poderia prever - foi uma questão de lógica, senão vejamos: se a conduta fosse conjunção carnal (leia-se, sexo vaginal) mediante violência ou grave ameaça com mulher, seria punida com pena de 6 a 10 anos, agora se o mesmo indivíduo mediante violência ou grave ameaça, praticasse atos sexuais diversos da conjunção carnal, configurando, assim, o atentado violento ao pudor, seria punido com pena de... 6 a 10 anos pelo (agora revogado) art. 214 do CP. Qual a lógica então de tipificar as condutas em dispositivos diversos apenas por critério de sexo da vítima e forma da prática sexual se a reprovação atribuída pelo legislador à conduta era a mesma?

A nova redação do art. 213, a seguir transcrita, corrigiu essa inexplicável diferenciação feita pelo legislador:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.


Em que pese esta aparente modernização do Código, com sua adequação à mentalidade do século XXI, tivemos também um grande retrocesso que foi tipificar a conjunção carnal, ainda que consensual, em tipo autônomo, com menor de 14 anos (que antes era tida como estupro presumido no, ora revogado, art. 224 do CP):

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos.
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos

Vejamos o absurdo que pode decorrer da presente norma e que já decorria com o dispositivo antigo: se um homem obriga uma mulher a ter conjunção carnal com ele, terá pena mínima de 06 anos, enquanto que se um rapaz tem a mesma conjunção carnal com uma sua namorada de 13 anos, terá a pena mínima de 8.

Ante o revogado art. 224, "a", do CP, que o art. 217-A veio a substituir, a doutrina e a jurisprudência tendiam atribuir valor relativo à "presunção de violência", tendo, ao que parece, se mantido o legislador alheio a isto. Apesar da aparente boa intenção de aumentar a repressão à odiável pedofilia, faltou na lei o bom senso de se acompanhar a evolução dos tempos e os casos, que já se apresentavam na praxis, de um menor de 14 pode ter mais "experiência" que um maior de 18 e que a maturidade sexual não chega em uma data pré-estabelecida, tal como quis o legislador, mas variando de caso a caso. Como observou Delmanto, ainda sob a égide do art. 224 do CP: "a presunção pode ceder, por exemplo, se a ofendida já era corrompida, aparentava idade superior pelo seu desenvolvimento, etc." (in: DELMANTO, Celso [et al.]. Código Penal comentado. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 604)

Uma possível solução seria não vincular a prática dos atos libidinosos ou conjunção carnal tão somente à idade, mas ao consenso, não advindo ele de remuneração e ainda, à maturidade sexual que decorre, por óbvio, após a puberdade, não parecendo adequado ao legislador atribuir a maturidade sexual de modo genérico aos 14 anos, quando só um exame psicológico poderia fazer essa aferição.