segunda-feira, 29 de março de 2010

Causos Criminais: João Nerval o ladrão de 14 real

A área da advocacia criminal é, ao mesmo tempo, a mais espinhosa pela barbaridade de alguns crimes e por toda a questão social que a envolve e ao mesmo tempo a com mais "causos". Em qualquer rodinha de conversa descontraída de advogados criminalistas há sempre alguma história bizarra ou cômica para se contar; talvez seja esta uma, ainda que pequeníssima, compensação aos espinhos desta área, que são muito numerosos (e conta inclusive com episódio recente de chute a advogado).
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Esse caso vi há algum tempo no youtube do João Nerval, o ladrão que se defende alegando que gera emprego pro repórter, pro escrivão, pro promotor, pro delegado...


Fica minha recomendação também do livro "Causos criminais" do Roberto Delmanto, pela editora Renovar. E enquanto não me apresentarem um livro de "causos cíveis ou trabalhistas", penal continuará sendo, pelo menos, a área mais legal do Direito =)

terça-feira, 23 de março de 2010

A tutela penal da recusa a serviço eleitoral é mesmo necessária?

Aproveitando este ano de eleições, comecei a tentar me aprofundar um pouco mais no direito penal eleitoral e me chamou a atenção o "cochilo" do legislador no art. 344 do Código Eleitoral, que tem a seguinte redação:

"Art. 344. Recusar ou abandonar o serviço eleitoral sem justa causa:
Pena - detenção até dois meses ou pagamento de 90 a 120 dias-multa."

Este tipo penal, com equivalente em diversos outros diplomas legislativos brasileiros anteriores, visa a assegurar o bom e regular andamento do processo eleitoral, coibindo a recusa e o abandono por parte de quem, legalmente, tenha recebido a incumbência do serviço eleitoral (p.e. mesários), não se aplicando, em nosso ver, o presente tipo aos funcionários de carreira das Juntas Eleitorais. Nesta linha, Joel Cândido acentua que: "o art. 344 se aplica, somente, aos mesários, escrutinadores, auxiliares e seus respectivos susbstitutos ou suplentes, e só para os serviços de votação e apuração" (in: Direito Penal Eleitoral & Processo Penal Eleitoral. Bauru: Edipro, 2006. p. 377)

Podemos observar, na análise dos núcleos do tipo, um verdadeiro vácuo legislativo quando se constata que o simples não-comparecimento do convocado ao serviço eleitoral não configura o crime do art. 344, que só contempla as ações de "recusar" e "abandonar", ao passo que não comparecer é uma omissão.

Assim, não se admitindo à luz dos princípio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine lege stricta) a interpretação extensiva do tipo para abarcar a figura omissiva, tem-se que a ausência do convocado irá caracterizar tão-somente infração administrativa, prevista no art. 124, caput, do Código Eleitoral (pagamento de multa). A contradição reside exatamente aí: nas duas situações tanto não comparecer como se recusar ou abandonar terão iguais efeitos prejudiciais ao andamento das eleições, todavia, de forma aparentemente inexplicável um conduta é incriminada e outra não, contrariando frontalmente o princípio da proporcionalidade.
E não é demais ressaltar que a sanção administrativa já serve para tutelar a infração do art. 344, até porque, como demonstrado, já serve para tutelar os casos de ausência injustificada, sem que seja necessária a sempre drástica intervenção do Doreito Penal, que deve manter seu caráter fragmentário, intervindo apenas onde os outros ramos do direito não puderem tutelar eficazmente o bem jurídico, o que não é o caso em tela.

Enquanto o legislador não enxergar o Direito Penal como razão última e continuar a vê-lo como remédio para todos os males dificilmente essas quase infinitas lacunas existentes na legislação penal serão suprimidas. Nesse tempo, quem não quiser ser mesário não diga abertamente que não vá e nem tampouco vá para depois logo em seguida sair, simplesmente não vá. É o que (in)diretamente parece dizer o legislador eleitoral para aqueles que querem fugir da convocação e ao mesmo tempo da intervenção penal.

quinta-feira, 18 de março de 2010

E também não comete crime quem incita publicamente o linchamento de criminoso?

Conforme noticiado no UOL:
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"O ex-deputado extremista Afanasio Jazadji teve esta semana uma estreia no SBT digna de um 'bastardo inglório´. No programa 'B.O.´, como comentarista, ele defendeu que a população deveria fazer o escalpo e linchar um criminoso em São Paulo. Um dia antes, na terça, praticamente teve um orgasmo, ao vivo, ao comentar a morte de outro ladrão durante a fuga, após um assalto a residência".
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"se a população pega esse cidadão, tem que tirar o escalpo dele, pelo menos!!!"

"tem um vagabundo pendurado no muro, espetado, é realmente uma satisfação!"

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Volta e meia aparecem na televisão alguns figurões como esse, com discurso sádico e oportunista, repleto de clichês que podem se mostrar sedutores em tempos de crise ao apresentar o Direito Penal como remédio para todos os males... mas, se assim fosse, a América-Latina estaria próxima da solução com o exacerbado alcance que o Direito Penal adquiriu nesses últimos anos (e a situação só piora).

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E isso é mais preocupante quando é um ex-deputado (vale dizer, ex-representante do povo que deveria zelar pelo bom cumprimento das leis e da constituição) quem prega ao vivo a usurpação da função jurisdicional, precipitando julgamento e penas, com a criação de um processo ultra-sumário, sem rito e sem regra, onde o que importa é a rápida resposta à sociedade vítima do medo coletivo.

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Ora, fôssemos adotar essa sistemática absurda e medieval, o próprio apresentador do programa teria que ser o primeiro a ser linchado, afinal incitar, publicamente, a prática de crime é crime previsto no art. 286, do Código Penal. E cumpre esclarecer, ele, à luz da Constituição, ainda não é culpado e só o será, se for, depois de regularmente julgado e tendo sido-lhe assegurados todos os meios de defesa e o devido processo legal...
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Agora será que ele confia tanto na eficácia do sistema que prega a ponto de pedir a aplicação a si próprio ou exigirá um bom advogado para cuidar de sua defesa e um juiz regularmente constituído para julgá-lo (como deveria ocorrer com todos acusados)?
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A resposta a essa pergunta é muito simples, ao contrário da solução para o problema penal..
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"A futilidade das punições severas e do tratamento cruel, pode ser demonstrada mil vezes. Enquanto a sociedade for incapaz de resolver seus problemas, a repressão, solução fácil, será sempre aceita" (Rusche e Kirchheimer, citados por Claudio Heleno Fragoso em "Direitos dos Presos. São Paulo: Forense, 1980. p. 15-6)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Novo princípio de direito penal: o réu deve pagar pelas omissões do Estado

Este é um daqueles casos que vão para as pérolas do Judiciário e que seria até cômico, se não fosse trágico.
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O cliente em questão está preso e embora já tenha atendido aos requisitos para progredir seu regime de cumprimento de pena em 15 de novembro do ano passado, continua no regime fechado, motivo: não há vagas para o semiaberto.
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Em atenção ao corolário penal de que ninguém pode cumprir pena de forma mais gravosa que a que lhe foi imposta, que decorre do próprio princípio da legalidade, a Defesa, patrocinada pelo meu grande amigo e colega João Rezende Filho, pediu sua transferência para o regime aberto ou domiciliar até que abrissem vagas no regime semiaberto. Eis a resposta da magistrada (no final da postagem segue a sentença na íntegra):
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Pois é, nada de art. 5°, XLV da CF: o réu paga, além de seus erros, pelos erros do Estado.

É uma nova e perigosa "linha doutrinária", afinal se adotarmos o pensamento expresso na sentença de forma mais ampla, o "in dubio pro reo" não poderá ser aplicado em benefício do acusado quando houver possíveis omissões da polícia.

Leva ao arrepio qualquer penalista pós-Beccaria, que aliás, deve estar se remexendo no túmulo numa hora dessas.

Íntegra da sentença:

(Obs: o nome do réu foi por nós rasurado)







quarta-feira, 10 de março de 2010

A primeira audiência

Hoje fiz minha primeira audiência, foi na 3ª Vara Criminal como dativo.

Ao chegar, pedi para conversar reservadamente com o acusado que claramente não gostou de ter sido nomeado para ele um advogado novo. Pacientemente expliquei que já tinha trabalhado na área criminal no Serviço de Assistência Judiciária da UEM por 03 anos, o que parece tê-lo acalmado um pouco.


Correu a instrução normalmente. O caso era uma receptação de receptação, ou seja: A furtou uma moto e a vendeu para B que vendeu para C, que era meu cliente.


Um detalhe no caso me chamou a atenção: os policiais civis chegaram a C porque ao passarem na frente de sua residência e checarem a placa de sua motocicleta, que estava estacionada defronte, constataram que era "fria", tendo então prendido-o em flagrante pelo crime do art. 311 do CP. Ocorre que durante o inquérito constatou-se, inequivocamente, que A é quem tinha adulterado a placa. Diante disso, foi então C acusado pelo Ministério Público apenas pela receptação, art. 180, do CP.
Como a receptação nas modalidade de "adquirir" e "receber" é crime instantâneo, não havia flagrante em relação a C diante do novo enquadramento, mas mesmo assim continua preso pelo flagrante do crime do art. 311, do CP que não praticou.

Pleiteei ao final da instrução, oralmente, ao juiz pelo relaxamento do flagrante diante da ausência dos requisitos do art. 302 do CPP; a promotoria se insurgiu alegando ser a receptação crime permanente, insisti no pedido e ele foi reduzido a termo para apreciação por escrito do MP e decisão do magistrado. Vamos esperar e ver amanhã o que se decide.
Quanto ao cliente desconfiado do começo, ficou com a feição mais tranquila e até me agradeceu ao ver a instransigência na luta pelos seus direitos. Nessas horas, no começo de carreira, gostaria de aparentar ser mais velho pra evitar essas desconfianças pela idade. Só que quando eu ficar mais velho, provavelmente, quererei parecer mais novo... vai entender?!

sábado, 6 de março de 2010

Uma análise penal sobre a fraude à 2ª Fase do Exame da OAB 2009.3


Como é cediço, ante a suspeita de fraude na 2ª fase do Exame de Ordem, a CESPE/UnB, responsável pela aplicação da prova, e a OAB suspenderam a correção e a divugação dos resultados da prova prático-profissional do Exame de Ordem 2009.3, aplicada em 28 de fevereiro de 2010, até deliberação do Colégio de Presidentes de Seccionais da OAB que se reúne em Brasília no domingo, dia 07 de março de 2010.


Um dos episódios da fraude, consistiu em um dos examinandos, em Osasco (SP) ter as respostas da prova anotadas a lápis nas páginas do Código Penal, que podia ser consultado durante a prova. Diante disso, surge a questão: o examinando em questão cometeu crime? Se sim, qual?

Apesar da elevada reprovação social às fraudes, mormente no caso onde 18.500 bacharéis em Direito serão prejudicados se a prova efetivamente for anulada, e ao prejuízo que causam para a elaboração do novo certame, nossa legislação penal vigente carece de um tipo incriminador para a conduta de fraudar concursos públicos, extensivo ao Exame de Ordem pela sua função.

Parte da doutrina e jurisprudência em forçada hermenêutica, para não deixar condutas de tamanha gravidade sem punição penal pela omissão legislativa, enquadram a conduta como estelionato (art. 171, do CP), como neste recente aresto, mutatis mutandis, do STM:

APELAÇÃO. ESTELIONATO. FRAUDE EM CONCURSO. INSTITUIÇÃO DE ENSINO MILITAR. PREJUÍZO CARACTERIZADO. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DO SURSIS. APELO PROVIDO PARCIALMENTE. MILITAR QUE PARTICIPA DE ESQUEMA FRAUDULENTO NO CONCURSO PARA INGRESSO NA ESCOLA DE ESPECIALISTAS DE AERONÁUTICA (EEAER) MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DE UM TERCEIRO PARA SUBSTITUÍ-LO NA REALIZAÇÃO DO EXAME, QUE LHE ASSEGUROU O INGRESSO NA CARREIRA MILITAR. Presença dos elementos essenciais do crime de estelionato, previsto no art. 251 do CPM: meio fraudulento, dolo em induzir a Administração Militar a erro, vantagem ilícita obtida pelo agente consubstanciada no ingresso no curso de sargentos da referida instituição de ensino. Materialidade comprovada mediante prova pericial, cuja conclusão atesta que os lançamentos gráficos constantes das provas não partiram do punho do acusado. A contraprestação do serviço prestada pelo acusado durante o treinamento técnico-militar não tem o condão de excluir o prejuízo da Administração Militar, pois persiste a formação de um militar sem habilitação nas provas intelectuais. Apelo defensivo provido parcialmente para conceder o benefício da suspensão condicional da pena. Decisão unânime. (STM; APL 0000003-45.2004.7.02.0202; Rel. Min. Antônio Apparicio Ignacio; Julg. 16/12/2009; DJSTM 05/03/2010)

Tal solução, ao menos aparentemente sana a omissão do legislador, mas viola o princípio constitucional da legalidade. Senão vejamos:

a) o sujeito passivo do estelionato deve ser pessoa certa e determinada, não ocorrendo, como assinala Julio Fabbrini Mirabete, “estelionato, mas crime contra a economia popular quando atingidas vítimas indeterminadas[i]”. No caso, agravado até pela abrangência nacional do Exame de Ordem, fica impossível determinar precisamente os sujeitos passivos;

b) o estelionato é crime contra o patrimônio que para a configuração do tipo subjetivo exige a “vontade de obter ilícita vantagem patrimonial para si ou para outrem”[ii]. O Exame da OAB serve apenas para verificar a aptidão do indivíduo ao exercício da prática profissional como advogado, não trazendo por si só qualquer vantagem patrimonial direta, afastando-se de forma inequívoca, no caso, a existência do dolo específico para que o estelionato restasse caracterizado.

Neste sentido, acertadamente, decidiu o STJ em caso análogo que:

HABEAS CORPUS. FRAUDE A VESTIBULAR. "COLA ELETRÔNICA". ESTELIONATO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO. USO DE DOCUMENTO FALSO. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. TRANCAMENTO DA AÇÃO. ATIPICIDADE E PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1 - Paciente denunciado por estelionato, falsificação de documento público, falsidade ideológica, uso de documento falso e formação de quadrilha, (artigos 171, § 3º, 297, 299, 304 e 288, todos do Código Penal), em concurso material. 2 - "Fraudar vestibular, utilizando-se de cola eletrônica (aparelhos transmissor e receptor), malgrado contenha alto grau de reprovação social, ainda não possui em nosso ordenamento penal qualquer norma sancionadora" (INQ 1145/STF). 3 - Writ concedido para reconhecer a atipicidade da "cola eletrônica" e trancar a ação penal no que diz respeito às condutas tipificadas nos artigos 171, § 3º e 299 do Código Penal, mantida a persecução penal em relação as demais condutas típicas e autônomas. (STJ; HC 39.592; Proc. 2004/0162092-7; PI; Sexta Turma; Rel. Des. Conv. Haroldo Rodrigues; Julg. 19/11/2009; DJE 14/12/2009)

Cabe ainda destacar que tampouco cabe o enquadramento da conduta da fraude ao tipo do art. 288 (falsidade ideológica) do Código Penal, porque nas anotações do examinando em seu Código Penal, tal como no caso narrado, porque não foi inserida ou omitida “declaração falsa ou diversa daquela que deveria ser escrita", mas pelo contrário. Assim, o examinando, inequivocamente, não cometeu crime.

Nesta linha, com o fim de suprir este verdadeiro vácuo legislativo, que estão prontos para votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania três projetos de lei do Senado que tipificam como crime - com previsão no Código Penal - a fraude em concurso público, correntamente entre os crime de “fraude à fé pública”[iii].

Enquanto a lei não vem, a conduta continua atípica, restando apenas aos examinandos prejudicados a busca pela reparação dos danos na esfera civil.
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Notas:
[i] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Vol. 2. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 273.
[ii] Idem, p. 276.
[iii] http://www.senado.gov.br/Agencia/vernoticia.aspx?codNoticia=98690&codAplicativo=2. Acesso em 06/03/2010.