quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Mais um caso inusitado

Pegar bicicleta emprestada e não saber onde deixou não caracteriza apropriação indébita

DECISÃO
16/11/2009 - 11h12

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu, por unanimidade, o pedido de habeas corpus em favor de M.C., que cumpria pena pelo crime de apropriação indébita. A Turma entendeu que não houve dolo (tipicidade penal) na conduta de M.C., que pegou uma bicicleta, avaliada em R$ 220, emprestada com um amigo para fazer compras, embriagou-se e esqueceu-se do veículo na porta do supermercado. Ao retornar para a casa do dono da bicicleta, não sabia dizer em que lugar a havia esquecido.

Em maio de 2003, na cidade de Miranda, em Mato Grosso do Sul, M.C. pediu emprestada a bicicleta marca Sundow 18 marchas que pertencia a W.M.O. com a finalidade de comprar carne e outros produtos com o objetivo de fazer um churrasco. Algumas horas depois, M.C. retornou ao apartamento do amigo sem a bicicleta, afirmando que não sabia onde havia deixado o bem. Vinte dias depois, W.O. conseguiu reaver a bicicleta que estava abandonada no mesmo local no qual havia sido esquecida, o Mercado Lisboa.

A denúncia por apropriação indébita aconteceu em 2006 e, um ano depois, o acusado foi condenado à pena de um ano e seis meses de reclusão, tendo sido estabelecido o regime inicial semiaberto para o cumprimento da pena. A defensoria pública recorreu ao Tribunal de Justiça estadual (TJMS) para que fosse extinta a ação penal por ausência de justa causa, mas o tribunal negou provimento ao recurso: “Não há que se falar em absolvição se restou demonstrado nos autos que o agente não tinha a intenção de devolver a bicicleta para a vítima, uma vez que esta só foi recuperada porque a própria vítima a encontrou, sendo que o agente em nada contribuiu para o feito”.

Inconformada, a defesa apelou ao STJ, alegando que M.C. foi injustamente condenado. “Uma mera análise superficial da prova testemunhal evidencia a atipicidade de sua conduta pela absoluta ausência de dolo. Afinal, a própria vítima, W.O., durante as fases do processo, confirma terem se passado cerca de seis horas entre o empréstimo da bicicleta e o retorno do amigo sem o referido veículo; e que ele voltou até o prédio em tal grau de embriaguez que, num primeiro momento, sequer se lembrava de ter pegado a bicicleta. Somente quando foi confrontado com testemunhas que presenciaram o empréstimo, foi que ele assumiu não se lembrar onde a deixara”.

A defensoria também alegou que na única oportunidade em que foi ouvido, o acusado deixou claro jamais ter tido a intenção de se apoderar da bicicleta, não tendo devolvido o bem ao legítimo dono simplesmente porque não sabia onde a havia deixado. Com base nestes argumentos, requereu ao STJ concessão do habeas corpus para “absolver M.C. e mantê-lo em liberdade, diante da atipicidade de sua conduta pela ausência de dolo”.

O ministro Nilson Naves, relator do processo, acolheu as alegações da defesa e ressaltou: “No caso, pode-se afirmar que o paciente foi displicente, negligente mesmo com a coisa que lhe foi emprestada, pois em vez de embriagar-se a ponto de esquecer onde deixara a bicicleta que não era dele, deveria ter feito suas compras e prontamente devolvido o veículo ao proprietário. Sua conduta poderia se encaixar numa modalidade culposa, mas fica a anos luz do dolo exigido para configurar a apropriação indébita descrita no Código Penal”.

Para o relator, M.C. não obteve nenhum proveito em razão do empréstimo, uma vez que a bicicleta ficou abandonada na porta do estabelecimento comercial por vinte dias. “Como, então, atestar a vontade inequívoca de não restituir o bem? Tenho sérias dúvidas da tipicidade do fato. O meu convencimento é o da desnecessidade aqui da tutela penal, visto que a ação de apropriar-se ficou a meio caminho – se o crime é um fato típico e antijurídico, como se falar em conduta penalmente punível se o elemento subjetivo não se confirmou?”, salientou.

Seguindo o voto do relator, que concluiu não haver justa causa para ação penal pelo crime de apropriação indébita, os ministros da Sexta Turma concederam o pedido de habeas corpus, extinguindo o processo.

Fonte: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=94649, acesso em 17/11/2009.


Torna-se compreensível, quando chegam casos como este, o pleito do STJ por institutos como a súmula vinculante e a repercussão geral, já utilizados pelo STF para filtragem dos casos que ali chegam.>

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O indulto de natal

Em entrevista concedida à TV Justiça, o desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) Edson Smaniotto fala sobre o indulto de natal e explica a diferença entre o indulto e a saída temporária e quais os requisitos para que o preso obtenha tais benefícios.


Neste ano, o indulto foi concedido pelo Presidente da República através do Decreto nº 7.046 de 22.12.2009 e repetiu a inovação trazida pelo Decreto 4.904/2003 ao conceder o indulto humanitário, previsto no inciso IV e nas alíneas "a", "b" e "c", do inciso VII, do Decreto deste ano, às mulheres (condenadas à pena superior a 8 anos e que tenham cumprido em regime fechado ou semiaberto, um terço da pena, se não reincidentes, ou metade, se reincidentes) que tenham filhos com deficiência mental ou física ou menores de 16 anos e que necessitem de seus cuidados e; aos presos paraplégicos, tetraplégicos, portadores de cegueira total e de doenças graves e permanentes, havendo, nestas hipóteses o requisito da constatação por laudo de médido oficial ou designado pelo Juízo de Execução.


Merece destaque também o inciso VIII, do art. 1° do Decreto, ao conceder o indulto às pessoas submetidas à medida de segurança, independentemente da cessação da periculosidade que, até 25 de dezembro de 2009, tenham suportado privação da liberdade, internação ou tratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada, ou, nos casos de substituição prevista no art. 183 da Lei nº 7.210, de 1984, por período igual ao tempo da condenação, mantido o direito de assistência nos termos do art. 196 da Constituição.

Não deixa de ser uma forma de extinguir a "prisão perpétua" a que estavam submetidos os que cumpriam medida de segurança e que em postagem anterior chamamos a atenção com o documentário "a casa dos mortos".

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A cifra dourada na prática


Tarso: bloqueio da Satiagraha dá recado de impunidade
VANNILDO MENDES - Agencia Estado

BRASÍLIA - A decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Arnaldo Esteves Lima de suspender os atos da Operação Satiagraha, que investigou o banqueiro Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity, recebeu hoje duras críticas do ministro da Justiça, Tarso Genro. Para ele, a medida, embora legítima, cria a sensação de impunidade na população. "Num processo dessa importância, isso tem grave reflexo no senso comum", disse. "Confirma aquela conclusão clássica: os poderosos no Brasil dificilmente vão para a cadeia."Genro considerou a decisão temerária e a atribuiu às falhas do sistema processual penal do País, que a seu ver permite "recursos dilatórios infindáveis", com o STJ e o Supremo Tribunal Federal (STF) funcionando como instâncias a mais no emaranhado de instâncias recursais. Segundo ele, isso "alimenta na sociedade a sensação de que aqueles bem aquinhoados são protegidos pelo Poder Judiciário, o que a rigor não é verdade".


O problema, disse, "é que uma decisão desse tipo cria no senso comum a visão de que os ricos são inatingíveis pela Justiça".Ele ressalvou que sua crítica não leva nenhum demérito a quem proferiu a sentença. "Os ministros são conscientes e decidem de acordo com a lei, mas obviamente algo tem que mudar na estrutura processual penal brasileira, para que essas coisas não se repitam de maneira tão frequente." A decisão baixada pelo ministro do STJ suspende toda a operação e as sanções já determinadas contra o banqueiro e suas empresas. O gabinete do ministro Arnaldo Esteves Lima informou que ele está de férias e não poderia fazer nenhum comentário a respeito das declarações de Genro.

Mais um que não passou pelo processo $eletivo para aplicação do sistema penal...



quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A casa dos mortos

"A maioria morre aqui é por enforcamento"
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Embora exista um filme de terror homônimo, não é dele que nos referiremos nessa postagem, mas do documentário dirigido brilhantemente pela antropóloga Débora Diniz, e que não deixa de pertencer a este mesmo gênero ao retratar o dia-a-dia de um manicômio judiciário em Salvador.
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“Durante 24 minutos, internos que sobrevivem ou morrem em um presidio psiquiátrico em Salvador (BA) se tornam os narradores do documentário A Casa dos Mortos, produção da Universidade de Brasília selecionada para concorrer na categoria curta-metragem do festival internacional É Tudo Verdade (o mais influente da américa latina). O título do filme se refere a internos que morrem na instituição, seja por doença ou suicídio, e aqueles que simplemente deixam de viver: abandonados, sedados, sem perspectivas ou futuro. Muitas vezes sequer têm consciência de quem são.” (Da Secretaria de Comunicação da UnB).
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Um tapa na cara... que nos faz lembrar, ainda que por alguns instantes, destes "mortos" cada vez mais esquecidos e relegados à prisão perpétua que a Constituição diz ser vedada.
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O documentário encontra-se disponível na íntegra em:
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http://www.youtube.com/watch?v=FLuZVLojKJw (no youtube com legendas em inglês)
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"que se reescrevam então os infernos de Dante Alighieri, mas aqui é a realidade manicomial"

sábado, 5 de dezembro de 2009

A prisão como "tratamento" de saúde

É princípio consagrado em um Estado Democrático de Direito que o Direito Penal deve ser utilizado como "ultima ratio", ou seja, como última opção de controle, não podendo se tornar o "remédio para todos os males" sob pena de retrocesso a um Estado de exceção.
Fica evidente a cada dia que há uma quase obsessão pelo uso do Direito Penal, especialmente da pena privativa de liberdade, como solução rápida para problemas evidentemente sociais. Assim, abrandam a sensação de mãos atadas e transferem a culpa para o caos instaurado do Estado para o "inimigo".

Essa ampliação do Direito Penal é uma tendência e, a longo prazo, assusta pensar nas consequências... Vejamos um caso prático, noticiado essa semana aqui em Maringá-PR (04/12/2009), onde o cárcere, ante a falta de vagas em clínicas para recuperação de dependentes químicos, passou também a ter esta função c(l)ínica:


"Dos 153 detentos recolhidos no minipresídio da 9ª Subdivisão Policial (SDP), de Maringá, cerca de 80% seriam usuários de crack. “Para a maioria, ficar preso acaba se transformando num tratamento de saúde forçado, mas não deixa de ser um tratamento eficaz”, diz o investigador Josué Batista Nunes, que há cerca de seis anos responde pela chefia de carceragem. Em geral, a polícia não encontra dificuldade em identificar um viciado. Emagrecimento, tosse constante, falta de concentração e agitação são sintomas clássicos que denunciam o usuário de crack. No entanto, bastam alguns meses trancafiados para que o usuário recupere a vitalidade, pelo menos aparente — já que internamente os estragos causados pela droga são irrecuperáveis. Os problemas causados pelo crack levaram alguns detentos mais antigos – denominados “xerifes” - a proibirem o consumo da droga na cadeia. No recado, repassado de boca a boca — até mesmo para as visitas, que ingressavam com a droga escondida dentro do corpo — os presos foram alertados de que seriam surrados, caso fossem flagrados usando o entorpecente. Desde a “proibição”, reduziram-se os furtos e brigas dentro da cadeia." (Fonte: http://www.odiariomaringa.com.br/noticia/231557, acesso em 05/11/2009)

Fica a reflexão de Jesús-Maria Silva Sánchez: "tal expansão é em boa parte inútil, na medida em que transfere ao Direito Penal um fardo que ele não pode carregar" (in: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, p. 61).

E o questionamento:
Se ele (Direito Penal) não pode carregar porque o Estado se recusou, no final, carregar o fardo sobrará pra quem?


quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Convite: lançamento do livro "Economia política da pena"

O blog Cláusula Penal convida seus leitores para participarem do lançamento da obra Economia política da Pena, de autoria do professor Marco Alexandre de Souza Serra, graduado pela UEM, Mestre em Direito Penal pela UFPR e professor na graduação do curso de Direito da UEM.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O meio insidioso e a dissimulação no crime de homicídio

Por João Rezende Filho e Luiz Rosado Costa


O vocábulo “insidioso” tem o significado de “pérfido; dissimulado”, razão pela qual convém delimitar a diferença existente entre o “meio insidioso”, previsto no art. 121, §2°, III, do Código Penal, e o homicídio “mediante dissimulação”, previsto no inciso IV do mesmo dispositivo, tendo-se em vista a proximidade semântica dos termos.

O meio insidioso é o meio dissimulado, quando há a prática de sabotagem, exemplificando Magalhães Noronha que tal meio resta caracterizado quando “se se dissimula a boca de um poço, para que a vítima nele se precipite; se se misturam a alimentos limalhas ou fragmentos de vidro; ou se se usam substâncias mortais que não são propriamente veneno”(NORONHA, 1982, p. 32).

Já a dissimulação, define Nélson Hungria, “é a ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa” (HUNGRIA, 1981, p. 169), ocorre, desta forma, quando a vítima não tem motivo para desconfiar dos desígnios do homicida.

Destarte, na hipótese da dissimulação, a vítima encontra-se desprevenida porque ignora o propósito do agente, enquanto que na do meio insidioso ela, embora possa conhecer ou desconfiar da conduta do agente, ignora completamente o meio em que se dará o atentado contra sua vida. Sob a ótica do poder da vítima esboçar defesa em relação à ação homicida que contra si recai, a dissimulação anula a capacidade de defesa em relação à pessoa que contra si age, como, por exemplo, evitar o convívio, enquanto que o meio insidioso anula a possibilidade de defesa em relação à forma com a qual se almeja o resultado morte, eis que esta encontra-se oculta.

Pode-se assim concluir que a diferença fundamental entre as duas qualificadoras é que a primeira refere-se ao meio utilizado para a execução do delito, ao passo que a segunda trata do modo como é executado, tendo ambas em comum a perfídia dos homicidas que assim agem.

REFERÊNCIAS:
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. V, arts. 121 a 136. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1982.

sábado, 21 de novembro de 2009

Um pouco de teatro

Da peça "o juiz de paz na roça" (1838), de Martins Pena:


JUIZ — Não posso deferir por estar muito atravancado com um roçado; portanto, requeira ao suplente, que é o meu compadre Pantaleão.
MANUEL ANDRÉ — Mas, Sr. Juiz, ele também está ocupado com uma plantação.
JUIZ — Você replica? Olhe que o mando para a cadeia.
MANUEL ANDRÉ — Vossa Senhoria não pode prender-me à toa: a Constituição não manda.
JUIZ — A Constituição!... Está bem!... Eu, o Juiz de Paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem.
MANUEL ANDRÉ — Isto é uma injustiça!
JUIZ — Ainda fala? Suspendo-lhe as garantias...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

É cada uma...

E pra quem acha que é alguma montagem que circula pela Internet, segue a notícia em fonte oficial do Governo:
http://www.sistemas.aids.gov.br/imprensa/Noticias.asp?NOTCod=58514

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O vendedor e a pedra

Todos os dias batia às portas da vizinhança o seu José, vendendo desinfetante que ele mesmo fabricava em sua casa e também um excelente produto que eu sempre usava para a limpeza das pedras de casa. De uns tempos pra cá dei por sua falta e conversando com um vizinho soube que ele fora preso.


- Preso? Como assim?

- É, tomou flagrante e "grampearam" ele no 273.

E assim foi, estava preso pelo que dispõe no art. 273 c/c com seus §§1°-A e 1°-B, ou seja, por vender produto "saneante" sem registro do órgão sanitário competente, estando sujeito a pena de 10 a 15 anos e multa.

Bem melhor seria para ele, de acordo com a (i)lógica da legislação penal, que ao invés de vender o produto para limpar as pedras que ornamentam o chão e as paredes das casas, o seu José vendesse as pedras de crack que destróem famílias que vivem nas casas, pois a pena mínima, se fizesse isso, seria de apenas 5 anos (art. 33 da Lei 11.343/2006).

Ainda pensando nesse caso, lembrei de minha vó nordestina que fabricava sabão com gordura e depois distribuia pros vizinhos. Sorte que ela já teve sua punibilidade extinta pelo art. 107, I, do CP, porque não se se ela agüentaria saber que praticava um crime considerado como hediondo apenas por fazer e dar de presente sabão.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A democratização do judiciário

"Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido, salvo o dos tribunais, que emana do concurso público de provas e títulos e será exercido em nome dos doutrinadores e precedentes."

Uma breve releitura do texto constitucional por Nilo Batista, que embora curta, traz longa reflexão...

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O estupro, a lei nova e o legislador de 1940

Neste mês de agosto, a Lei 12.015/2009 alterou alguns dispositivos do Código Penal referentes aos crimes sexuais. A primeira grande mudança e que tem passado, muitas das vezes, despercebida está no próprio TÍTULO VI, anteriormente nominado "DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES" e agora chamado "DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL". Relacionar os crimes sexuais como crimes aos costumes ainda era um resquício do legislador, moralista ao extremo, de 1940, que ainda atribuía ao direito penal a tutela de bens jurídicos exclusivamente morais, o que, por si, contrariava a ideia, hoje difundida, mas na época nem tanto, de fragmentariedade do Direito Penal. Nesta esteira tínhamos a expressão "mulher honesta", referindo-se a mulher virgem antes do casamento (e que por ter esta condição, merecia especial tutela pelo Código) e a tipificação do adultério como crime, no art. 240 do CP, sendo que, só há pouco tempo, a expressão e o aludido delito foram abolidos do Código Penal


Vê-se, assim, que aos poucos o legislador foi adaptando o Código aos novos valores sociais e à verdadeira função do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito, onde vigem princípios limitadores à sua drástica intervenção como o da intervenção mínima, fragmentariedade, insignificância, adequação social e etc. Desta nova Lei, além da mudança do título, como destacamos inicialmente, temos a revogação do crime de atentado violento ao pudor, transferindo a tutela de seus bens a um tipo único, o do art. 213 (estupro).

Mais que uma questão de adaptação à nova realidade social -afinal, agora é possível o estupro de alguém que biologicamente seja homem, mas anatomicamente seja mulher, com as modernas cirurgias de troca de sexo, entre outras tantas coisas criadas pela modernidade e que o legislador da década de 40 não poderia prever - foi uma questão de lógica, senão vejamos: se a conduta fosse conjunção carnal (leia-se, sexo vaginal) mediante violência ou grave ameaça com mulher, seria punida com pena de 6 a 10 anos, agora se o mesmo indivíduo mediante violência ou grave ameaça, praticasse atos sexuais diversos da conjunção carnal, configurando, assim, o atentado violento ao pudor, seria punido com pena de... 6 a 10 anos pelo (agora revogado) art. 214 do CP. Qual a lógica então de tipificar as condutas em dispositivos diversos apenas por critério de sexo da vítima e forma da prática sexual se a reprovação atribuída pelo legislador à conduta era a mesma?

A nova redação do art. 213, a seguir transcrita, corrigiu essa inexplicável diferenciação feita pelo legislador:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.


Em que pese esta aparente modernização do Código, com sua adequação à mentalidade do século XXI, tivemos também um grande retrocesso que foi tipificar a conjunção carnal, ainda que consensual, em tipo autônomo, com menor de 14 anos (que antes era tida como estupro presumido no, ora revogado, art. 224 do CP):

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos.
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos

Vejamos o absurdo que pode decorrer da presente norma e que já decorria com o dispositivo antigo: se um homem obriga uma mulher a ter conjunção carnal com ele, terá pena mínima de 06 anos, enquanto que se um rapaz tem a mesma conjunção carnal com uma sua namorada de 13 anos, terá a pena mínima de 8.

Ante o revogado art. 224, "a", do CP, que o art. 217-A veio a substituir, a doutrina e a jurisprudência tendiam atribuir valor relativo à "presunção de violência", tendo, ao que parece, se mantido o legislador alheio a isto. Apesar da aparente boa intenção de aumentar a repressão à odiável pedofilia, faltou na lei o bom senso de se acompanhar a evolução dos tempos e os casos, que já se apresentavam na praxis, de um menor de 14 pode ter mais "experiência" que um maior de 18 e que a maturidade sexual não chega em uma data pré-estabelecida, tal como quis o legislador, mas variando de caso a caso. Como observou Delmanto, ainda sob a égide do art. 224 do CP: "a presunção pode ceder, por exemplo, se a ofendida já era corrompida, aparentava idade superior pelo seu desenvolvimento, etc." (in: DELMANTO, Celso [et al.]. Código Penal comentado. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 604)

Uma possível solução seria não vincular a prática dos atos libidinosos ou conjunção carnal tão somente à idade, mas ao consenso, não advindo ele de remuneração e ainda, à maturidade sexual que decorre, por óbvio, após a puberdade, não parecendo adequado ao legislador atribuir a maturidade sexual de modo genérico aos 14 anos, quando só um exame psicológico poderia fazer essa aferição.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

A prisão, Foucault e a fábrica de delinquência

“Dispor de local adequado para que os presos cumpram suas penas não é somente direito deles, mas principalmente um direito do restante da sociedade”, disse ontem o presidente da subseção de Maringá da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cesar Augusto Moreno, segundo noticiou o diário (http://www.odiariomaringa.com.br/noticia/217111/), e isso vem a calha nesta semana em que o sistema carcerário esteve bastante em foco na imprensa
Esta foi uma semana em que o sistema carcerário aqui da região esteve bastante em foco na imprensa, a começar pela delegacia de Marialva que não tem cadeia e os presos são colocados em uma sala comum de 4 metros por 4, sem janela, ventil~ção e banheiro (os detentos só podem ir ao banheiro duas vezes ao dia em horários marcados), isso sem contar a mulher, presa por tráfico de drogas, que ficou acorrentada por 05 dias na porta da carceragem, dormindo no chão, conforme os representantes da OAB constataram dia 11/05/2009.
Continuando, dia 13/05/2009, O Diário (página A3) noticiou que a capacidade do CDP (Centro de Detenção Provisória) chegou no limite e só poderá receber novos presos depois que houver soltura ou transferência de detentos, o que na prática significa que os detentos terão que aguardar nas cadeias anexas às delegacias - as quais, por sua vez, já estão com lotação superior à capacidade e, mesmo assim, continuam a receber novos presos diariamente.
Neste mesmo dia (13/05/2009), a Gazeta do Povo, de Curitiba (pra sair um pouco de nossa região e mostrar que o problema é generalizado) noticiou (página 9) que a comissão de Direitos Humanos da seção paranaense da OAB constatou em vistoria que oito presos da Delegacia de Furtos e Roubos (DFR), no Jardim Botânico, zona leste de Curitiba, estão no escuro há mais de uma semana. Não bastasse isso, os presos da DFR convivem com ratos, afinal, seria impossível fazer uma boa dedetização sem uma grande operação para remover os detentos.Em outra carceragem, a Delegacia de Furtos e Roubos de Veículos (DFRV), a mesma comissão constatou a presença de quase 8 presos por vaga.



Michel Foucault, pensador e epistemólogo francês:
"A prisão é um duplo erro econômico: diretamente pelo custo intrínseco de sua organização e indiretamente pelo custo da delinqüência que não se reprime".


Nem há muito o que comentar sobre tudo isso, os fatos falam por si só e para aqueles que acham que "lugar de bandido é na cadeia", é bom lembrar que um dia eles voltarão às ruas e, com bastante sentido, muito mais revoltados do que entraram; é importante, por isso, lembrarmos as ainda atuais lições de Michel Foucault na obra monumental "Vigiar e Punir" (31ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2006, pág. 222):

"O primeiro desejo que nele nascerá (no jovem delinquente) será de aprender com os colegas hábeis como se escapa aos rigores da lei; a primeira lição será tirada dessa lógica cerrada dos ladrões que os leva a considerar a sociedade como inimiga; a primeira moral será a delação,a espionagem honrada nas nossas prisões; a primeira paixão que nele será excitada virá assustar a jovem natureza por aquelas monstruosidades que devem ter nascido nas masmorras e que a pena se recusa a citar... ele rompeu com tudo o que o ligava à sociedade".

Para finalizar, um caso concreto específico desta análise do Foucault: a comissão de Direitos Humanos da OAB que visitou as delegacias de Curitiba constatou a existência de um preso que está há 6 meses detido por furtar duas carteiras de cigarro e não teve nenhuma audiência desde então. Ele compartilha a cela com um acusado de latrocínio (roubo seguido de morte). Nestes casos, de furtos de valores irrisórios, o STF afasta a própria tipicidade material do crime pelo princípio da insignificância, mas até lá, quanto ele e outros em situação semelhante já não terão aprendido com seus colegas de cela mais experientes? Ou então, até lá, que tipo de delinqüente o próprio Estado não terá produzido contra si mesmo?




terça-feira, 12 de maio de 2009

As drogas, a polícia e o poder jurisdicional

Hoje inauguraremos o blogue "Cláusula penal", para discutir as questões atuais e práticas do direito criminal. Mas por que o nome de algo referente ao direito das obrigações, eminentemente privado, em uma coluna sobre direito criminal, eminentemente público? É que se o Estado foi formado a partir de um contrato social, como teorizaram Hobbes e Rousseau, o direito criminal seria a cláusula penal deste contrato.

Charles Louis de Secondat, Barão de La Brède et de MONTESQUIEU


A jurisdição (do latim juris = direito e dicere = dizer) é o poder que detém o Estado de aplicar o direito ao caso concreto, com o objetivo de solucionar os conflitos de interesses e resguardar a ordem jurídica e a autoridade da lei. Em um Estado tripartido , segundo o modelo de Montesquieu, como é o nosso, tal função é privativa do poder judiciário. Embora assim seja na teoria e até mesmo por disposição constitucional, não é o que ocorre em relação aos crimes de drogas, onde, indiretamente, quem decide se o acusado responderá ou não o processo em liberdade é a autoridade policial que efetuou o flagrante, retirando um poder que deveria caber privativamente ao juiz, senão vejamos por este caso verídico:


Um amigo meu que advoga em Toledo foi procurado pela mãe de José (aqui os nomes usados serão fictícios) para patrocinar sua defesa vez que ele acabara de ser preso em flagrante, em sua própria casa, acusado por tráfico de drogas, e a boa senhora não entendia como tinham prendido seu filho por tráfico (e ele era apenas usuário) se os policiais lá tinham estado pra resolver um caso de apropriação indébita. Aconteceu o seguinte: José dias antes tinha pegado um carro emprestado de Joaquim se comprometendo a devolver depois de uma semana. Passada a semana e José não tendo devolvido o carro, Joaquim ligou para a polícia militar, que compareceu na casa de José para tentar resolver a situação, entre bate-bocas e xingamentos mútuos, Joaquim num momento de raiva, sabendo que José era usuário, falou para os policiais que ele era traficante e que podiam entrar lá na casa pra verificar porque com certeza encontrariam drogas. Dito e feito. Os policiais então adentraram a casa de José e encotraram um pacote pequeno de maconha, 03 celulares e 02 dvds e apreenderam tudo como prova de que ele praticava o tráfico ilícito de entorpecentes (!), vale ressaltar que não foi apreendida nenhuma arma ou dinheiro (talvez tenham pensado que o tráfico se faz através de escambo como na época do mercantilismo, mas enfim...).
A primeira coisa que meu amigo advogado fez foi, ainda em fase de inquérito, entrar com um habeas corpus alegando a ilegalidade da prisão por terem os policiais adentrado a casa de José sem um mandado judicial, foi indeferido porque segundo entendeu o desembargador que julgou a liminar, o tráfico é crime permanente e o próprio inciso XI do art. 5º da CF autorizaria a prisão nessa situação.
Acolheu o promotor a versão da polícia e feita a denúncia e tendo contra si uma acusação formal pelo Estado, como sendo incurso nas sanções do art. 33 da Lei 11.343/2006, foi pedida sua liberdade provisória, negada pelo juiz porque o art. 44 da referida Lei, veda a liberdade provisória neste caso (embora seja uma flagrante inconstitucionalidade) e mesmo que o juiz quisesse, não poderia conceder, sob pena de "ilegalidade". A defesa prévia que pedia a rejeição da denúncia também não foi acolhida e o processo continua andando, há um mês, e José preso.
Mas o que determinou que ele respondesse ao processo preso?
Os policiais que efeturaram a prisão e encontraram alguma quantidade de droga (que segundo argumento plausível de José, ele sempre comprava o máximo que dava - e não era muito ante seus rendimentos de pedreiro- para se arriscar o menos possível em entrar nas "bocas de fumo" para adquiri-la), 03 celulares (sendo que na casa dele moram 4 pessoas) e 2 dvds, que segundo fizeram constar no inquérito, seriam produto do tráfico. José jamais registrara qualquer antecedente ou passagem policial.
A lei veda a prisão do usuário mas até que ele possa provar que o é, e isso agora só poderá ocorrer ao final do processo, ele continuará preso ... mas por ordem investida pelo poder jurisdicional de quem? Da polícia? ou até pior... de um desafeto seu que queria se vingar por não ter devolvido seu carro.